24 de setembro de 2004

livro (do riso) amarelo

Acompanho uma amiga a um consultório médico, numa clínica privada. A consulta estava marcada para as 17:00 horas. Às 17:30 h. o médico telefona para a clínica a informar que está atrasado (informação inútil, uma vez que já toda a gente na sala de espera tinha reparado nesse facto) e sugere que os pacientes vão tomar um cafezinho e apanhar ar.
Entretanto, o tempo – esse grande estupor escultor – vai passando.

17:45 horas. Esperamos no café.
18:00 horas. Leio o Público: o Calvin; o Bartoon; o PS; os artigos do Sousa Tavares e do Prado Coelho. Bebo um café.
18:25 horas. Peço uma água. Leio o Público (o Y): Nick Cave; A Vila, de M. Night Shyamalan. Dispenso o artigo sobre o novo filme do Kusturica, estou farto daquelas palhaçadas sem sentido.
18:45 horas. Ainda o Y: Indie Lisboa.
19:00 horas. Y: Entrevista a John Cooper, programador do Festival de Sundance.
19:15. Saio do café. Regressamos à clínica.
19:20. Huuummm... Parece que o senhor doutor está quase a chegar...
19:30.
19:45.
20:00 horas (e com isto atinge-se o recorde olímpico de 3 horas de atraso).
20:09 horas: alegria! Chegou o senhor doutor!
A partir daqui é só seguir a ordem de marcação das consultas. Tendo a primeira sido marcada para as 16:00 horas, gastamos algum tempo a fazer contas para tentar prever a hora em que vai ser realizada a consulta. Cerca das 20:15 h. fazemos apostas.
20:58 horas. Perco a aposta. A minha amiga sai da sala antes das 21:00 horas, graças ao esforço do senhor doutor em não demorar tempo demasiado com cada consulta.

Uma vez que tudo isto se passa num consultório privado, onde os pacientes estão bem instalados, aguardando numa confortável e acolhedora sala de espera, sentados em cadeiras de escritório (à venda no Continente, por altura da inauguração do ano lectivo ou da abertura das escolas ou da colocação dos professores ou do início das aulas ou lá o que é), numa temperatura tropical, sem o incómodo dos aparelhos de ar condicionado, com uma televisão ligada na SIC e em que ninguém se pode queixar de não ouvir bem o que por lá se diz (não há especialidade em otorrinolaringologia na clínica), e com a possibilidade de ler revistas com programação de televisão ou sobre aparelhos de ginástica e musculação (todas datadas de Maio ou Junho de 2004), ninguém reclama muito do facto do senhor doutor chegar atrasadito. Para mais, o senhor doutor apressou-se a atirar um «peço desculpa» para as paredes da sala, tendo explicado à minha amiga que se tinha... atrasado.
Tivesse semelhante coisa acontecido num hospital público e logo o aborrecimento se tinha transformado em invectivas neo-liberais (embora de cariz popular) contra a gritante ineficiência de todos os serviços públicos (o que não acontece no privado), a mais que provada incompetência de todos os funcionários públicos (o que não acontece no privado), as cunhas (que o privado não tem), os compadrios (que o privado não tem) ou as listas de espera (que o privado não tem), a preguiça do funcionário (o que não acontece no privado) que, em vez de fingir que é um super-homem, dá atenção ao que lhe diz o colega que faz uma pausa, porque tem o dele certo ao fim do mês, a falta de respeito para com quem paga (o que não acontece no privado) impostos e está doente e se vê obrigado a recorrer à inépcia do sistema público, para onde só quem arranja emprego são os indolentes ou os mal educados.
Assim não. Como tudo se passou na eficiência e qualidade que os privados sempre oferecem (ou vendem...), no melhor dos mundos que só o mercado totalmente livre das obtusas regras do Estado pode garantir, neste paraíso de virtudes que são todos os serviços privados, não houve a mínima reclamação. Viva o futuro! Quer factura?

4 Comments:

Blogger lb said...

Vou armar-me um pouco em neo-liberal:
Porquê é que o médico se atrasou? - Sera que era por causa do serviço no hospital público, onde ganha a sua reforma e os clientes para o consultório privado?
Se realmente dependesse só do seu consultório, teria mais tempo para os seus pacientes e esforçava-se em servir os melhor! Também teria mais concorrentes com disponibilidade de atender os clientes que ele não atende bem.
A suposta economia de mercado, especialmente em relação aos profissionais liberais como médicos, arquitectos, também advogados, em Portugal é em vasta medida uma fraude. Primeiro têm o emprego público, que exercem com pouco empenho, não sendo o local das suas ambições, mas da sua segurança e de angariação dos seus clientes privados, e nos tempos livres, brincam aos profissionais liberais, frequentemente com resultados pouco profissionais...

26 de setembro de 2004 às 00:07  
Blogger timshel said...

Sobre o fundo do problema não me pronuncio. Mas gostei imenso do estilo. Por vezes és um demagogo incorrígivel :) (felizmente que utilizas a demagogia para as boas causas)

26 de setembro de 2004 às 08:56  
Anonymous Anónimo said...

A saúde devia ser totalmente privatizada, cada um que fique com a sua e não a dê a ninguém. Porque é que alguns têm que perder a sua para a dar aos outros? No outro dia fui à farmácia e quis comprar uma aspirina, só uma, e disseram-me que tinha que levar uma caixa. Remédio santo, passou-me logo a dor de cabeça sem ser necessário tomar nada. Mandei-os meter a caixa na "prateleira".

26 de setembro de 2004 às 14:24  
Blogger Work Buy Consume Die said...

Gostei do post, principalmente pela acusação "invertida": de facto, qualquer neo-liberal que se preze iria, numa situação semelhente, mas num hospital público, desancar o SNS, sem vêr que quem não tem dinheiro não pode ir a outro sítio.

O nosso Jaquinzinhos é a minha fonte desses pensamentos.

3 de outubro de 2004 às 01:07  

Enviar um comentário

<< Home

Powered by Blogger

www.website-hit-counters.com