20 de agosto de 2004

Entre Venezuela e Nadalândia

«Estranho, esse ditador Hugo Chávez. Masoquista e suicida: criou uma Constituição que permite que o povo o tire do poder, e arriscou-se a que isso ocorresse num referendo revogatório que a Venezuela realizou pela primeira vez na história universal. Não teve castigo. E esta acabou sendo a oitava eleição que Chávez ganhou em cinco anos, com uma transparência que Bush muito gostaria de ter para um dia de festa.
Obediente à sua própria Constituição, Chávez aceitou o referendo, promovido pela oposição e pôs seu cargo a disposição do povo: "Decidam vocês". Até agora, os presidentes interromperam sua gestão somente pela morte, golpe militar, insurreição popular ou decisão parlamentar. O referendo inaugurou uma forma inédita de democracia directa. Um acontecimento extraordinário: quantos presidentes de qualquer país do mundo se animariam a fazê-lo? E quantos continuariam a ser presidentes depois de fazê-lo?
Esse tirano inventado pelos grandes meios de comunicação, este terrível demónio, acaba de dar uma tremenda injecção de vitaminas à democracia, que na América Latina, e não só na América Latina, anda adoentada e precisando de energia.
Um mês antes, Carlos Andrés Pérez, anjinho de Deus, democrata adorado por todos os grandes meios de comunicação, anunciou um golpe de Estado aos quatro ventos. Prontamente afirmou que "a via violenta" era a única possível na Venezuela, e depreciou o referendo "porque não faz parte da idiossincrasia latino-americana". A idiossincrasia latino-americana, ou seja, nosso precioso legado: o povo surdo-mudo.
Há poucos anos, os venezuelanos iam a praia quando havia eleições. O voto não era, nem é, obrigatório. Mas o país passou da apatia total ao total entusiasmo. A multidão de eleitores, filas enormes esperando ao sol, de pé, durante horas e horas, desbordou todas as estruturas previstas para a votação. A inundação democrática tornou também dificultosa a aplicação da prevista tecnologia último modelo para evitar fraudes, nesse país onde os mortos têm o mau costume de votar e onde alguns vivos votam várias vezes em cada eleição, talvez por culpa do mal de Parkinson.
"Aqui não há liberdade de expressão!", dizem com absoluta liberdade de expressão os ecrãs de televisão, as ondas de rádio e as páginas dos jornais. Chávez não fechou nenhuma das bocas que quotidianamente cospem insultos e mentiras. Impunemente ocorre a guerra química destinada a envenenar a opinião pública. O único canal de televisão fechado na Venezuela, o canal 8, não foi vítima de Chávez mas dos que usurparam sua presidência, por um par de dias, no fugaz golpe de Estado de Abril de 2002. E quando Chávez voltou da prisão e recuperou a presidência nas mãos de uma imensa multidão, os grandes meios venezuelanos não se inteiraram da novidade. A televisão privada esteve todo o dia passando filmes de Tom e Jerry.
Essa televisão exemplar mereceu o prémio que o rei da Espanha outorga ao melhor jornalismo. O rei recompensou uma reportagem desses dias turbulentos de Abril. O filme era uma fraude. Mostrava os selvagens chavistas disparando contra uma inocente manifestação de opositores desarmados. A manifestação não existia, segundo se demonstrou com provas irrefutáveis, mas se vê que esse detalhe não tinha importância porque o prémio não foi retirado.
Até recentemente, na Venezuela, paraíso petroleiro, o censo reconhecia oficialmente um milhão e meio de analfabetos e havia cinco milhões de venezuelanos sem registro e sem direitos cívicos. Esses e muitos outros invisíveis não estão dispostos a regressar à Nadalândia, que é o país onde habitam os ninguéns. Eles conquistaram seu país, que tão alienado era: este referendo provou, uma vez mais, que ali eles ficam».
Eduardo Galeano

17 Comments:

Blogger Alcabrozes said...

Agora é que lixaste a malta, pá!
Quem é Eduardo Galiano?

20 de agosto de 2004 às 12:02  
Blogger CC said...

Eduardo Galeano (com "e" e não com "i") é um jornalista e escritor uruguaio. Viveu exilado na Argentina e em Espanha e, em 1985, regressou ao Uruguai. Tem livros editados em mais de vinte línguas e as suas crónicas e artigos de opinião tornaram-no um pensador muito influente em toda a América Latina.

20 de agosto de 2004 às 15:16  
Blogger Alcabrozes said...

Muito obrigados, mestre!
(vénia)

21 de agosto de 2004 às 11:59  
Blogger Sofia Garcia said...

«A vitória de Chávez foi limpa mas todos os observadores independentes dizem que o general venezuelano é um verdadeiro populista, que aproveita os lucros da alta do petróleo para comprar o apoio do povo mas não cria condições para o seu desenvolvimento» Hermínio Santos in Diário Digital

Pois e aí é que a porca torce o rabo. Não achas estranho estes tiques do nosso simpático Chavéz em que querer ser idolatrado e aqueles (pequenos...pequeníssimos) gestos de autoritarismo que revelou no passado? É certo que ganhou, e sem fraude, mas não é o salvador da pátria. Com uma maioria da população pobre como há na Venezuela é evidente que acabariam por lhe dar a vitória (esmagadora por certo), mal sabendo como o seu "herói" compromete o futuro da pátria e o seu próprio futuro. Como é que o 5 º maior produtor de petróleo do mundo não tem condições para avançar e desenvolver? Note-se que não estou contra políticas sociais nem de combate à fome, mas estas por si só não quebram o ciclo da probreza e de subdesenvolvimento. Principalmente quando estas são feitas com o propósito fundamental de afagar o ego.

23 de agosto de 2004 às 10:51  
Blogger Sofia Garcia said...

«Mr Chávez was first elected in 1998 (and again, for a six-year term, in 2000 under a new constitution). Under his rule, real incomes have fallen to 1950s levels; unemployment stands, officially, at 16%. The economy is growing strongly right now, thanks to high oil prices, but this follows a severe recession: the country has yet to recover the output lost in a two-month general strike in 2002-03. Despite the oil-price surge, the government is deeply in the red.

Venezuela has the largest oil deposits outside the Middle East. From the 1950s, oil revenues propelled a backward agricultural society into jangling modernity, convincing most Venezuelans they were heirs to limitless wealth. Oil brought political stability and some social progress—until the ratio of petrodollars to people turned against the country in the 1980s. Mr Chávez has diverted the extra cash from the current high oil price into social programmes that even supporters acknowledge amount to a “parallel state”. Money is spent not according to the country's development needs, but to keep him in power. »

http://www.economist.com/agenda/displayStory.cfm?story_id=3093539

ok só mais uma para justificar o meu ponto de vista. Nessa página do Economist há muitos links para artigos bem mais interessantes que do programa oficial do governo.

Admito que as alternativas a Chavez na Venezuela são fracas também, pulverizadas. Não há unidade nem garantias que fariam melhor trabalho. Mas não se cante vitória por um aprendiz de Fidel.

23 de agosto de 2004 às 11:15  
Blogger Sofia Garcia said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

23 de agosto de 2004 às 11:16  
Blogger Alcabrozes said...

Sofia,
e no Médio Oriente os lucros fabulosos do petróleo são usados para...?
Ou será que este tipo incomoda porque não é pró-americano e interessa passar uma certa imagem de perigoso comunista?
Porque é que todos os países produtores de petróleo não alinhados com os EUA são vítimas, de uma maneira ou de outra, de campanhas e atitudes de destabilização?
Ou acha que a(s) inavsão(ões) do Iraque foi(ram) por causas humanitárias?

o.n.p.

23 de agosto de 2004 às 14:34  
Blogger Sofia Garcia said...

Não mete-lo ao bolso como a família al -saud ( da arabia saudita)já é uma vitória reconheço. Mas políticas tipo "electrodomesticos para gondomar" não o levam longe.

O único que estava a apontar é que tem de aproveitar o período da alta do preço do petróleo para desenvolver o país e não comprar votos. É um ponto simples que não tem a ver com anti - comunismo, américa (que até tem ficado com o bico calado desde que os poços estejam a funcionar), situação no médio oriente, etc.

23 de agosto de 2004 às 15:02  
Blogger Alcabrozes said...

Mas parece que não são só "electrodomésticos", acho que também contempla uns subsídios, médicos voluntários para as favelas de Caracas, etc.
Faz-me lembrar o Presidente da Câmara de Alcoutim, que é médico e que dá consultas grátis nos Paços do Concelho e é acusado de demgogia populista pela oposição, mas que os utentes têm mais um médico têm!
Estas questões do ser ou não ser populista têm muito que se lhe diga...

23 de agosto de 2004 às 15:45  
Blogger Sofia Garcia said...

o termo "electrodomesticos" foi para explicar a motivação, não o objecto em si. Ainda hoje li com alegria no Diário Digital que a economia brasileira espera crescer cerca de 4% este ano (falo do PIB) esperendo-se que o proximo ano mantenha esse ritmo. O presidente Lula, de esquerda, também teve o programa contra a fome (infelizmente entratanto deixado ao abandono, mas não tenho a certeza como está esse programa agora) mas também apostou na industrialização do país e tem acompanhdo por outras medidas para fortalecer a economia, apesar de contratempos, alguma corrupção de alguns elementos do governo, ... parece-me um exemplo bem mais positivo não achas? Chavéz tem reunido para si cada vez mais poder (militar, juidicial), numa luta de se manter no poder. Foi eleito democraticamente é certo, mas há ali tendencias preocupantes.

23 de agosto de 2004 às 16:48  
Blogger Alcabrozes said...

Oxalá que te enganes, para bem dos venezuelanos.
Vamos ver o que dá!
Mas se o patronato (adoro o termo!) fizer contravapor vamos ter confusão...

23 de agosto de 2004 às 16:56  
Blogger Alcabrozes said...

A propósito de patronato, tenho uma colega que é responsável pela acção e apoio social aqui onde eu o CC trabalhamos e que quando assumiu funções e recebeu um dos nossos colegas, que entrou a matar, respondeu do seguinte modo:
-"Pode tratar-me pelo nome, por colega e até por puta, não admito é que me trate como patronato!"

23 de agosto de 2004 às 17:01  
Blogger CC said...

Sofia,
também partilho algumas das tuas reticências quanto ao modo de exercer o poder de Hugo Chávez. No entanto, o post queria sublinhar uma questão esquecida no meio do folclore das notícias sobre o referendo: é que Chávez sujeitou-se ao referendo porque quis. Não era obrigado a isso.
E mais. O referendo foi promovido num contexto extraordinariamente hostil para com Chávez, pela oposição que domina a comunicação social (televisão, rádio e jornais), com apoios externos de grandes empresas privadas e de países interessados, como os Estados Unidos, e com uma patronato que até decreta "greves". É neste contexto que ganha mais relevo a decisão de Chávez de se submeter voluntariamente ao referendo - e isso afasta-o decisivamente da condição de "aprendiz de Fidel". Como o afasta o facto de, por exemplo, na Venezuela não haver presos políticos. E isso não é pouco na América Latina.

Até Chávez, a Venezuela viveu sem aproveitar as condições que lhe eram oferecidas pelo facto de ser o 5º maior produtor mundial de petróleo. Pelo contrário. Aumentou o fosso social entre ricos e pobres, cresceu a pobreza extrema para nível nunca antes alcançados e não se apostou na industrialização, nem na educação, nem em quaisquer outras políticas sociais. As críticas que se fazem hoje a Chávez são omitidas quando se olha para o passado recente.
Do que sei - e é pouco - Hugo Chávez tem prosseguido uma série de políticas sociais sem precedentes na Venezuela. Talvez tenhas razão, Sofia, quando dizes que isso não basta, por si só, para fortalecer a economia do país - e é com agrado que vejo usares o exemplo de Lula. Mas, para quem vive em condições de pobreza extrema, numa país cheio de petróleo, é importante que, antes de ensinarem os pobres a pescar, lhes dêem peixes.

23 de agosto de 2004 às 17:24  
Blogger Sofia Garcia said...

lol essa expressão (do famoso ditado chinês não dês peies ensina a pescar) não seria reacção à crónica do João Pereira Coutinho do Espesso? - acho que foi aí que li....
mas ainda bem que esclareceste esses pormenores. Postei estes comentários porque há algumas razões para recear, infelizmente. Fiquei contente pelo Lula também, porque já o acusaram de tudo : de ter abandonado ideais de esquerda, de ser bêbado, de ser corrupto, de vestir só armani agora.... bolas é um alívio ter sinais positivos de uma governo que ousa fazer as coisas de forma diferente principalmente num terreno armadilhado como o da américa Latina e de mostrar que se pode apostar em políticas socais desde que abalizadas pelo crescimento saudável da economia , senão amanhã não há peixe para ninguém : (

23 de agosto de 2004 às 17:49  
Blogger Sofia Garcia said...

CC está enganado que Chavéz aceitou só agora o referendo porque nada tinha a recear. Esta foi a segunda vez que a oposição pediu o referendo, já que na primeira a CNE rejeitou grande parte das assinaturas (diga-se de passagem que a CNE é na sua maioria pró governo). Entretanto com a sua política "revolução boliveriana" Chavez teria tido tempo suficiente para reunir apoio da população através destes programas sociais.

«Opposition groups have made several unsuccessful attempts to hoist Mr Chávez by his own petard. Late last year, they claimed to have gathered more than 3m signatures demanding a recall vote—comfortably exceeding the 2.4m, or 20% of the electorate, that they needed. However, though the signature-gathering was witnessed by officials from the government, opposition and electoral commission, the president denounced it as a “mega-fraud”. The electoral commission, on which government supporters have a majority, ruled that 1.2m signatures were suspect. It insisted that, for them to be counted, the voters concerned must appear in person to reconfirm them.

This laborious exercise was carried out on May 28th-30th. With preliminary figures showing that enough of Mr Chávez’s opponents had turned out, the president conceded that the recall vote would go ahead, commenting that this showed he was not the “tyrant” his critics portrayed him to be. »
http://www.economist.com/agenda/displayStory.cfm?story_id=2742044

«By the time it was finally scheduled, the government had, it now appears, bought enough time to consolidate popular support. A massive increase in public spending, thanks to high oil prices, together with a rapid expansion of emergency welfare programmes and the blatant diversion of public funds for political purposes, seem to have won the day. The opposition's feeble and unimaginative campaign was no match for government propaganda.»
http://www.economist.com/world/la/displayStory.cfm?story_id=3113214

Eu não sei se a oposição faria melhor, já o afirmei, mas o processo não foi tão linear assim...

Aprendiz de Fidel porque o próprio disse que era uma referência além de grande amigo. Mas não confundamos as coisas, Venezuela é uma democracia e Cuba vive sobre uma ditadura.

24 de agosto de 2004 às 10:09  
Blogger . said...

Além de todo o resto, Chavéz ofereceu-nos um momento lendário de kitsch televisivo: a mensagem de Natal com a imagem do Menino Jesus. Queremos mais!!!
LR

25 de agosto de 2004 às 23:53  
Anonymous Anónimo said...

Não é nada! Ele chama-se Francisco Abreu Coelho!

o net pulha

26 de agosto de 2004 às 11:00  

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